terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Quatro poemas da juventude de Dalton Trevisan




MODERNISMO

A poesia não serve mais para nós...
Nesta época crua — tudo é prosaísmo
E ninguém admite doces ilusões,
E não quer — jamais! — saber de lirismo.

(Mas só de vergonha; tudo só vergonha
De falar em virgem... flores... lua... pranto...
Porque a alma de todos nós, os realistas,
Ainda é de mil oitocentos e tanto).

Hoje — a evolução! — só se escreve besteira
E quanto pior: mais genial, mais perfeito!
Agora a moda é a do subjetivismo
Que nos manda ao invés de seio escrever peito...

Poetas tristonhos, de negros cabelos, 
Olhos sonhadores, faces desmaiadas,
Roupa  no padrão do corvo ermo de Poe,
Poetas que (o! náuseas...) escreveis baladas,

Morte para todos vós, os passadistas
Do spleen, da taberna — e ainda mais — do verso...
Oh! vós que exigíeis ritmo, metro, estrofe,
E que só rimavam verso com disperso...

Morram, morram! A época é do pau-brasil,
Do samba, da farra e carnaval (velório
Depois...), de chantage, do gangster, do Blitzkrieg
— E onde vão os tísicos do sanatório! 

* Arquivo da revista Gran-fina


A MORTE E A VIDA 

“A morte, meus irmãos (falou o primeiro)
É treva; a vida é luz, só o fagueiro...”
Este era dos cinco homens, uno poeta.
“A vida... m...! A morte... não sei a meta”.

Diz descrente o segundo companheiro.
Exclamou aí então, deles o terceiro:
“Viver... Morrer... Por que? A curva e a reta?”

“Calai-vos, calai-vos, nobres ateus”
— O quarto tinha fé, que veio a dizer
“A morte me revela: a vida é Deus!”

E o silêncio fez-se no escuro horto.
Nada dizia somente o último ser.
Daqueles cinco amigos, era o morto...

* Arquivo Diário da Tarde

LINDA

Nós éramos pequenos. Sob o manto
Da inocência, voltou-me esta lembrança.
No jardim solitário, tonto, enquanto
Falavas, eu beijei-te a bela trança.

Ficaste bem zangada. E logo o pranto
Brotou numa graciosa e quieta dança, 
Dos teus olhos. O efeito fora tanto, 
Que irada, devolveste-me a aliança...

Não chores! — eu pedi, com medo quase
Que tua mãe, hostil, nos surpreendesse
Com: Que coisa, meu Deus!... — a eterna frase.

Feia! — chamei-te. Então, com grande pejo,
Pediste-me qual santa, em santa prece,
Que mil beijos te desse — ou mais um beijo...

* Arquivo Revista Careta


QUADRO REALISTA

No sórdido ambiente — os repletos cafés — 
Negra multidão tonta pelas bebidas,
Pulula nervosa, ignorante, suspeita,
Derramada pelas mesas encardidas...

Sobre o mundo lívido de fracassados,
Imagem cruel de mulher, se intromete
Entre os elogios e feras diatribes,
No seu avental sujo — uma garçonete.

Servindo o café e o leite sempre morno,
Ouve uma proposta esperada, sombria,
E arreganha a boca seus dentes podres
— Contente por não ter perdido este dia...

* Arquivo da revista Gran-fina

Exímio contista, Dalton Trevisan fez experiências no verso, ainda jovem, colaborando com jornais e revistas diversos dentro e fora de sua cidade natal. Ele nasceu em 14 de junho de 1915, em Curitiba. Recebeu o Prêmio Camões e Prêmio Machado de Assis, dois dos mais importantes reconhecimentos em língua portuguesa. É autor de, entre outros O vampiro de Curitiba (1965), A polaquinha (1985) e O beijo na nuca (2014). Trevisan morreu no dia 9 de dezembro de 2024.

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Três poemas de Ida Vitale




FORTUNA

Anos a fio usufruir do erro
e de sua emenda,
ter podido falar, caminhar livre,
não existir mutilada,
não entrar, ou sim, em igrejas,
ler, ouvir a música querida,
ser na noite um ser como no dia.

Não ser casada por negócio,
medida em cabras,
padecer o governo de parentes
ou legal lapidação.
Não desfilar nunca mais
e não admitir palavras
que ponham no sangue
limalhas de ferro.
Descobrir por ti mesma
outro ser não previsto
na ponte do olhar.

Ser humano e mulher, nem mais nem menos.


A PALAVRA INFINITO

A palavra infinito é infinita,
a palavra mistério é misteriosa.
Ambas são infinitas, misteriosas.
Sílaba a sílaba tentas convocá-las
sem que uma luz proclame seu domínio,
uma sombra assinale a que distância delas
está a opacidade em que te moves.
Vão a algum ponto do clarão, se aninham,
assim que as abandonas livres no ar
esperando que uma asa inexplicável 
te leve até seu voo.

É mais que seu sabor o gosto desta vida?


O SILÊNCIO

Peço silêncio
e é pedir a fruta
na flor de verão,
um tanque com peixes
ao abrir-se a chuva.
É sinistro esperar?
Arderá uma granada
de inesperado amor
e sua paz crescerá,
não um pântano morto,
não dilúvio de gelo,
epitáfio caído,
mas um presente doce,
um beijo de boa noite,
resplendor de bom filho,
lâmpada carinhosa.

 
Ida Vitale nasceu no dia 2 de novembro de 1923, em Montevidéu. É poeta, tradutora, ensaísta e crítica literária integrante da chamada Geração de 45 no seu país natal. Por causa da ditadura militar exilou-se no México entre 1974 e 1984; ainda retornou ao Uruguai e em 1989 transferiu-se para os Estados Unidos, onde viveu até recentemente. Desde 2009, quando recebeu o Prêmio Octávio Paz, acumulou uma variedade de reconhecimentos, como Reina Sofía de Poesia Iberoamericana (2015) e o Prêmio Cervantes (2018). Entre os livros que publicou em poesia estão títulos como La luz de esta memoria (1949), Palabra dada (1953), Cada uno en su noche (1960), Oidor andante (1972), Jardín de sílice (1980), Parvo reino (1984), Sueños de la constancia (1988) e Procura de lo imposible (1998).
 
* Traduções de Heloisa Jahn.